terça-feira, 16 de julho de 2013

Um canivet do Século XVIII: Santa Cecília

Já tinha mostrado aqui no blog alguns registos de santos com as margens recortadas, imitando delicados bordados, as images pieuses. Normalmente são estampas francesas do século XIX cujo trabalho de recorte e picotagem foi feito mecanicamente. Quando procurei informações para escrever sobre esses registos recortados, li que este trabalho, conhecido por canivet, tinha já uma grande tradição na Europa, muito antes do séc. XIX. Nos séculos XVII e XVIII essas imagens de santinhos eram feitas manualmente, usando um instrumento cortante, uma agulha ou um canivete para fazer o rendilhado ou o picotado. Fiquei intrigado, supondo como seriam bonitas essas estampas religiosas desse período, mas fiquei-me pela imaginação, até à semana passada, quando a nossa amiga Alexandra Roldão me enviou um genuíno canivet feito à mão, datado muito seguramente do século XVIII. Encontrou-o por acaso, no meio das páginas de um missal do Séc. XIX, que um comerciante de velharias lhe ofereceu.

Nunca pensei que fossem tão bonitos e parti à procura de mais informações sobre estes Canivets.

Crucifixus Est. Canivet de origem conventual alemã. http://www.ermannoraio.it/
Os canivets do século XVIII são estampas aguarelas ou pinturas, feitas em pergaminho ou papel e cuja orla é preciosamente recortada, imitando uma renda. Normalmente eram feitos em conventos, por senhoras, cujos nomes permanecem irremediavelmente anónimos. Representam inevitavelmente santinhos ou então a Virgem Maria ou Cristo. Quanto à proveniência, encontrei muitos destes registos nos sites de venda italianos e franceses e ainda numa espécie de museu on-line, descobri uma grande colecção de canivets executados em conventos alemães ou flamengos e todos eles são parecidos entre si. De tal forma, que cheguei a pensar que estas imagens religiosas recortadas poderiam ser estrangeiras e trazidas para cá, como provas de peregrinações efectuadas ao estrangeiro, a Roma por exemplo.

Papel recortado por freiras portuguesas para enfeitar bolos
No entanto, recordava-me de ter lido algures que as monjas portuguesas do século XVIII eram exímias nos trabalhos de recorte de papel. Consultei a obra de Emanuel Ribeiro, Arte do Papel recortado em Portugal. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1933 e a o artigo Arte do Papel de Eugénio Andrea da Cunha e Freitas in Arte Popular em Portugal. Lisboa: Verbo, [s. d.] e confirmei que as freiras portuguesas fizeram trabalhos maravilhosos em papel para decorar os doces conventuais, que são de todos aqueles que realizaram os mais conhecidos, mas também manufacturam verdadeiras rendas em papel para enfeitar castiçais, prateleiras, lanternas e ainda registos de santos.

Trabalho conventual português para decoração de castiçal
 A primeira obra refere que o Museu de Lamego possui um relicário muito curioso, formado por dozes destes registos, cada um deles contendo uma relíquia e o artigo Arte do Papel de Eugénio Andrea da Cunha e Freitas reproduz um santinho muito semelhante ao da Alexandra Roldão e atribuindo a sua manufactura a Estremoz, embora não perceba muito bem em que critério se baseia para tal.

Trabalho de recorte em papel de origem portuguesa reproduzido na obra Arte Popular em Portugal. Lisboa: Verbo, [s. d.]
Em todo o caso fiquei com a ideia que este trabalho de canivet foi vulgar por toda a Europa, ao longo do Século XVIII, nas casas religiosas femininas e que é possível que a Santa Cecília, pertencente à nossa amiga Alexandra seja um trabalho português e muito seguramente dessa época.

Para terminar e a título de curiosidade, em França, o termo canivet ficou de tal forma associado aos registos de santos, que a actividade de coleccionar estas imagens é conhecida por canivetie e um coleccionador de santinhos é designado por canivettiste.

13 comentários:

  1. Uma verdadeira maravilha que eu desconhecia e fiquei a conhecer. Obrigada!!

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    1. Cara Margarida

      Eu também só conhecia os registos com papel recortado do século XIX e fiquei completamente maravilhado com estes canivets setecentistas. Os blogs permitem esta troca de informações muito enriquecedora.

      Um abraço

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  2. Caro Luís,
    Conforme seria de esperar, o meu Canivet teve no seu blog o melhor lugar para ser sobejamente enaltecido em todos os seus aspectos.
    Infelizmente, ficaremos na eterna dúvida acerca da sua origem exacta.
    Se estes bocadinhos de papel falassem…
    Seja como for, e mais uma vez graças a si, tanto eu, quanto os demais leitores deste espaço ficámos de posse de informação que nos era desconhecida.
    Adorei aquela decoração para castiçal, que me fez lembrar alguns trabalhos feitos pela minha avó materna para enfeitar as cantareiras mas que, infelizmente, o tempo e alguns primos cabriolas trataram de dar sumiço.
    Não há dúvidas de que existem semelhanças entre o meu Canivet e o apresentado como tendo origem em Estremoz. No entanto, se pesquisarmos alguns sites de vendas na net, verificamos as mesmas semelhanças, pelo que não chegaremos a conclusões definitivas.
    Se me permitir, gostaria de acrescentar dois nomes de mulheres que, nesta técnica, e contrariamente à maioria conseguiram deixar a sua assinatura perene, uma no séc XVII, Susanna Mayer de Augusta (1600-1674) e outra já no séc XIX, Madame Bouasse Lebel (1809-1898).

    Um abraço
    Alexandra Roldão

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    1. Cara Alexandra

      Em primeiro lugar agradeço ter-se disponibilizado para mostrar aqui o seu "canivet". Acho que aprendemos todos um pouco mais sobre estes trabalhos femininos.

      Julgo que ficaremos na dúvida sobre a proveniência deste canivet. É plausível que seja português, pois houve nos nossos conventos uma tradição na arte de trabalhar o papel muito rica. Neles faziam-se enfeites para bolos, para castiçais, lanternas e segundo os autores, também registos.Mas também é verdade que é muito parecido com os registos que vimos nos sites franceses ou italianos e poderá por isso ser italiano, francês, alemão ou flamengo e e ter sido trazido para Portugal como prova de uma peregrinação.

      Um abraço e obrigado

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  3. Olá Luís

    Mais uma vez nos surpreende. Desconhecia o nome por que são conhecidos estes "santinhos", na terminologia mais chã do meu tempo de criança.Realmente o trabalho que rodeia a imagem só pode ter saído das mãos de uma freira, com todo o tempo do mundo e com uma paciência de santo para os executar. Embora goste de trabalhos artesanais e me dedique a alguns, tenho (grande defeito) pressa em ver o resultado. Daí que, estes canivet, só por colecção...
    Conheci uma família do Alto Alentejo que tinha um trabalho em papel recortado representando uma cena bíblica. O pormenor e o requinte eram magníficos.
    if

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    1. Cara IF

      Este mundo feminino dos conventos produziu uma arte muito própria. Registos, rendas, bordados trabalhos em papel, indumentárias litúrgicas e sabe-se lá que mais. Talvez este fosse um campo que algum historiador de arte se pudesse dedicar.

      Um abraço

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  4. Mais uma descoberta que fizemos todos, graças à sua pesquisa, despoletada pelo “santinho” da Alexandra Roldão. Dou-lhe os parabéns, que sorte ela teve! Para além do primor dos recortes, a própria imagem da S. Cecília, desenhada e pintada à mão, com o nome manuscrito, deixa-me de queixo caído...
    Já conhecia os “naperons” recortados para as caixas de doces conventuais, penso que até ainda se cultiva essa arte algures no Alentejo com doçaria regional, mas estes exemplares são de extremo requinte no rendilhado. Em miúda a minha mãe ainda me ensinou a fazer recortes em papel de seda ou vegetal para os pratos de bolo, ela não se saía nada mal, mas era arte efémera...
    Quanto aos enfeites para castiçal e a estes “canivets”, desconhecia de todo e apreciei muito toda a informação que aqui partilhou.
    Bjos.

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  5. Maria Andrade

    Julgo que esta arte de trabalhar o papel em canivete foi uma surpresa para todos. Só tinha lido sobre estes registos, mas não tinha visto nenhuma imagem. Doravante, graças a Alexandra Roldão andaremos todos muito mais atentos nas feiras de velharias e nos alfarrabistas à espera de descobrir um genuíno canivet do século XVIII no meio de um estendal onde se vende tudo a um euro. lol!

    Bjos

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  6. Maria Andrade

    Relativamente aos enfeites para bolos, segundo li, cada região do País tinha o seu recortado característico.

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  7. Luís,
    Não conhecia e é belíssimo.
    Obrigada.
    Boa tarde.

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  8. cara Ana

    Estes canivets são de facto peças espantosas

    Um abraço e obrigado

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  9. A peça é uma delícia de minúcia e delicadeza.
    Quando vejo um trabalho destes fico sempre cheio de vontade de o replicar, mas ... já me vai faltando a vista para este intricado de linhas e cortes. Paciência, eu tenho, felizmente, mas o "know how" não é fácil adquirir, mesmo com a "santa internet" debaixo dos dedos. É que é necessário dominar igualmente uma gramática de desenhos e motivos tradicionais que hoje nem sempre se conseguem entender.
    Usam-se estes motivos decorativos de uma forma indiscriminada, sem atenção à ligação lógica entre eles e à sua sequência que, adivinho, devem ter tido, para que fizessem sentido a um possuidor de uma peça destas de há dois séculos atrás.

    Possuo registos emoldurados com um rendilhado, bonito, mas frio, matemático quase, produzido a partir de maquinaria, cujo desenho de renda é ainda mais minucioso que este, mas falta-lhe a beleza e sensibilidade do trabalho humano que, afinal, faz a diferença destas peças.

    Fico sempre maravilhado com o tipo de utensílio que deveriam ter usado. Hoje é fácil adquirir um bom conjunto de bisturís para fazer cortes precisos e delicados, mas, há dois séculos atrás, ter-se acesso a estes tipo de instrumentos não seria nada fácil. Seriam necessário canivetes muito afiados, daqueles que cortam cabelos ao meio!
    Nem as minhas goivas, por muito que as afie, conseguem ter este tipo de fio.
    Há uns tempos atrás fiz um trabalho de restauro de uns rendilhados em folha de cortiça, cortada quase transparente, que decoravam molduras típicas alentejanas, de porte já considerável, trabalho quase sempre executado por pastores, os quais, com a ajuda de canivetes, produziam autênticas obras de arte.
    A julgar pelas datas das fotografias que se encontravam no seu interior, devem ser peças das últimas décadas do século XIX.
    Mesmo utilizando uma lente de aumento, os bisturís mais afiados e canivetes, que afiei igualmente quase até à exaustão, senti bastantes dificuldades na precisão do corte.
    Os parabéns à Alexandra por estes achados fantásticos.
    Manel

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  10. Manel

    Retirei este excerto da wikipedia francesa, artigo canivete, que dá algumas explicações sobre o instrumento de execução:
    "À l'origine le canivet est une image pieuse peinte sur du parchemin finement ajouré au moyen d'un canif très aiguisé (d'où le nom de canivet, mot dérivant du canipulum médiéval, petit couteau utilisé par les enlumineurs et copistes pour tailler leur plume d'oie et parfois utilisé pour décorer certaines pages de motifs incisés dans le parchemin). Plus tard, les artistes ont probablement aussi utilisé des emporte-pièce faits sur mesure ou peut-être des outils d'estampage empruntés aux artisans relieurs, travaillant le cuir, voire à des graveurs travaillant le cuivre ou à des orfèvres travaillant d'autres métaux."

    Como tu sabes, tenho sempre dificuldade em entender as técnicas e passo sempre por alto sobre esses assuntos.

    um abraço

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